30.9.08

meu poço




centenas de anos passaram nas águas barrentas do poço da estrada

outras tantas gentes o abriram. destruíram. puseram de pé

milhares de vezes desceu e subiu o balde de barro ou madeira. depois de latão

beberam as cabras. beberam crianças. peregrinos. cavaleiros ricos

de passagem breve baixo ao sol escaldante que não escolhe a quem

massacrar os ossos. ressecar a pele. invadir a boca de pó cor de sangue


centenas de anos passaram nas águas. milhares de galões saltaram das bilhas

para os lábios escaldados. o poço lá está. modesto. de barro. amassado à mão

desfeito e refeito. testemunha antiga de vidas passadas

da minha também sabe ele alegrias descidas correntes por montes até

chegar junto dele. namoros escondidos. amores proibidos. tantas vidas outras.

nunca as contará.



foto de J. Le Montagner

13.9.08

segui.te. encontrei.me



andei. te

no encalço

seguias de noite. seguias descalço

fugias

fugias das horas

de todo o cansaço

do uso de esporas


está o cavaleiro mais liberto

que o animal que monta a rigor?

segui. te

encontrei o traço deixado

em chão


passos teus?

só se pelo silêncio



porque no regresso cabiam lá dentro

como por medida

descalços

os meus.




foto By Piotr Krzaczkowski

2.9.08

palavras para esquecer



tantas. tantas palavras se acumulam.

não as digo. oiço-as a ressoar dentro de mim como sinos de morte

faço por não escrever

faço mais

faço por não pensar. por não ouvir

depois vou-me deitar para sonhar

é no sonho que surge o meu alívio do peso das palavras

o sonho varre-as como o vento a folhas mortas


por ser quase outono até ao despertar acredito

no vento.


foto de Tobias Trenwith

30.8.08

para lá da esperança



cubro o rosto de espera

é muito o Tempo

anunciam-me séculos sem te ver


segrego ausência

a tua

cubro-me de Esperança que nenhum deus me dá



baloiço-me

na cama

assim te amo

num quase infantil - para lá para cá...

(muito mais vezes para lá)



foto de Richard Murrian

27.8.08

do sonho à realidade



saído de um ventre de mulher há um ser que nasce

continuação de corpo

extensão de nervos para fora da pele

como ramos que brotam


tudo no mundo o espera


a mãe tem sonhos

e ele cresce e parte

qual Cristo. sem olhar para trás.


agora a árvore é ele.

dará sombra? aquecerá lareiras?

ou arderá. inútil. na mata incendiada?


tudo isso são destinos que ele próprio fará.

deus. à mãe. não diz nada.



foto de Maxim Kalmykov

24.8.08

deus a ti. fala?



dissolvo-me nas ramadas da vida


escuto


haverá novos sons?

sons como sinos

pedras em ricochete sobre lagos

gritos de alegria ecoando ventos?


dissolvo. mais ainda





a tentar confundir-me num elemento novo


endureci - a vida - nada mais.

não se dissolve pedra em virgem água


mas quem sabe deus fala ao teu ouvido

que te esperam

e tu mergulhas para me encontrar?


haverá novos sons?



foto de Al Calkins

23.8.08

nu e cru



definem-se as paisagens com o sol

luz-sombra

vida-morte



sabe-se de tudo. pelo contraste

claro-escuro



escreve-se ____ a pena de pavão

o que se dá a ler

a pena ____ de coruja silenciosa

o que se esconde




vive-se a preto e branco e em penumbra


a força ____ de se estar nu e cru


em tempo

de conduções ____ em ponto-morto



1 foto de Adam Butler

2 foto Alina Lebedeva

21.8.08

depois de. um cão.


depois da tempestade uma acalmia

fria

igual ao espaço branco do meu corpo

a azular com as luzes dos faróis


quem partiu
tu ou eu?

ficámos a meio caminho de tudo

desertos no deserto



um cão atravesssa. a correr. o areal

há vida

para lá do real que é não senti.la.





fotos -After the Storm Rebuketheworld
e de Yuri Bonder

20.8.08

voz do Nada



congelados olhos

os que olham a terra


deus se a concebeu



ausentou-se dela

para parte incerta



os homens comeram

procriaram

devastaram chão


aguçaram garras


usaram o cérebro

funda de arremesso



o silêncio de deus

responde ao final


com a voz do nada


ou um grito

- DANEM-SE!



foto de David Cartier